Na década de quarenta do século passado, Viana
do Castelo era uma cidade virada para o Atlântico. De lá saíam os mais
importantes bacalhoeiros do país rumo ao Mar desejado da Terra Nova. Por
incrível que pareça, a indústria da pesca, tal como os famosos estaleiros navais
construídos em 1944, constituía um dos maiores pilares da economia de toda aquela
região do Alto Minho. A cidade formigava com o pequeno comércio, com as feiras e
praças de rua, os caixeiros-viajantes, os apitos ensurdecedores dos amoladores
de facas e, nas alturas festivas, com os circos ambulantes. Pelas ruas
empedradas cruzavam-se pequenas carroças de burros com discretas charretes e, de
vez em quando, lá surgia um robusto automóvel seguido pelas correrias e
gritarias alegres da criançada.
Neste cenário de esperança pós Grande Guerra,
seguia pelas ruelas um casal de irmãos sempre de mãos dadas, muito apertadas, de
andar curvado mas ágil aos saltinhos. Consta que ele chamava-se Nicolau e ela
Adelaide, consta, ainda, que ficaram órfãos de mãe, pois o pai sempre foi
incógnito. Eram abordados por muita gente enquanto passavam, uns brincavam com
eles, outros troçavam, outros faziam-lhes perguntas para os ouvirem falar,
outros, ainda, desviavam a cara curiosa.
Fisionomicamente eram diferentes,
assemelhavam-se a antropóides, sim, pareciam símios; os braços mais longos do
que as pernas, a pele toda coberta de pelos pretos, as testas recuadas e os
narizes achatados não desmentiam: pareciam macacos. Sofriam de uma deficiência
nunca cientificamente explicada para além de lendas e boatos, muitos mexericos e
contos. O mais conhecido remonta a uma mulher da vida, de vida miserável, que
depois de saber-se grávida terá exclamado não querer ter filhos e se acaso os
tivesse, então que fossem macacos.
Lalau e Laidinha (foi por estes nomes que
ficaram conhecidos) nunca se separavam e quanto mais espicaçados pela turba
gingona, mais o irmão se insurgia violento. Eram para os locais uma parelha de
aberração circense andante e antes que algum empresário do ramo lhes visse fonte
de muitos reis, foram acolhidos pela Congregação da Nossa Senhora da Caridade.
Em boa verdade, na época, tudo o que era diferente deveria ser escondido, era
uma vergonha impedida de ver o sol do dia. Era uma prática comum em terras do
Alto Minho.
Claro que hoje seria abertura de noticiários,
fonte de dissecação cientifica ou, não me espantaria nada, a maior macacada na
cabeça dos realizadores e no topo das audiências da casa dos segredos.
Lembro-me deste caso desde os meus tempos de
infância em que a minha querida Odete, filha da criada da minha avó, que veio
com os nubentes, meus pais, para Lisboa, me contava para eu comer quando estava
mais enfastiado. Revivi, anos mais tarde, a história dos manos num artigo de
fundo numa edição do jornal "A Aurora do Lima". E, ontem, em conversa com o
director deste jornal, com cento e sessenta anos de existência, amigo da minha
mãe, Bernardo Barbosa, pessoa mui estimada e amável, solicitei o citado artigo
do arquivo que lera há mais de vinte e cinco anos. Infelizmente, aquela edição
não está digitalizada mas, mal tenha disponibilidade, irei pessoalmente a Viana
tentar encontrá-la. Por enquanto, ficou a promessa de uma fotografia e outros
detalhes. Deficientes ou não, foram duas vidas humanas que nasceram, viveram,
sentiram, sofreram e morreram.
De resto muito pouco se sabe (se fizerem uma
busca por um qualquer motor de pesquisa, não encontrarão nada), é um segredo que
Viana não se orgulha nem alimenta, um caso esquecido, como tantos outros, com
pais incógnitos.